Entrevista a Aydemir Güler sobre a situação na Turquia

«Derrotar o AKP <br> é justo e mobilizador»

Hugo Janeiro

Os pro­testos que eclo­diram nos úl­timos dias na Tur­quia re­sultam da con­fluência de des­con­ten­ta­mentos com di­versas ori­gens, mas ex­pressam um de­no­mi­nador comum: a re­jeição po­pular do pro­jecto re­ac­ci­o­nário que o go­verno pro­cura impor no país, disse ao Avante! o membro da As­so­ci­ação de Paz da Tur­quia e do CC do Par­tido Co­mu­nista da Tur­quia (TKP), que es­teve em Por­tugal a pro­pó­sito das reu­niões do Se­cre­ta­riado e da Re­gião Eu­ropa do Con­selho Mun­dial da Paz.

Mi­lhões de pes­soas estão nas ruas

Image 13339

As mo­vi­men­ta­ções de massas na Tur­quia surgem de­pois da re­a­li­zação de ma­ni­fes­ta­ções contra o en­vol­vi­mento turco no con­flito sírio. É essa in­ge­rência o seu prin­cipal factor de­sen­ca­de­ador?

A re­cusa da via in­ter­ven­ci­o­nista adop­tada pelo go­verno, ao lado dos grupos ar­mados e contra a Síria, foi um dos de­to­na­dores, sem dú­vida, mas o alas­tra­mento da re­volta surge na sequência de uma luta apa­ren­te­mente menor e mais sim­ples. Na Praça Taksim, o co­ração de Is­tambul, há um parque pú­blico muito apre­ciado que o go­verno do AKP [Par­tido da Jus­tiça e do De­sen­vol­vi­mento] quer de­molir, ar­gu­men­tando que vai re­cons­truir uma an­tiga ca­serna mi­litar oto­mana. Isso é a fa­chada. Na re­a­li­dade, onde hoje está o Parque Gezi, o AKP pre­tende cons­truir mais um centro co­mer­cial.

A re­jeição do em­pre­en­di­mento foi de­sen­ca­deada há muito, mas a re­pressão vi­o­lenta da de­fesa do Parque pro­vocou a in­dig­nação e o alas­tra­mento dos pro­testos.

A mai­oria dos turcos, e mesmo muitos dos ha­bi­tantes dos su­búr­bios de Is­tambul, nunca es­ti­veram no Parque Gezi, mas con­si­deram-no parte da iden­ti­dade da ci­dade.

 

Então o que move mi­lhões de pes­soas em todo o ter­ri­tório?

A des­truição do Parque Gezi foi a gota de água que fez trans­bordar a pa­ci­ência do povo. Foi a cen­telha da re­volta dos tra­ba­lha­dores, dos jo­vens, dos es­tu­dantes, de sec­tores e ca­madas in­ter­mé­dias que re­cusam o ali­nha­mento do país numa guerra im­pe­ri­a­lista na re­gião; que estão contra a pro­posta de nova cons­ti­tuição apre­sen­tada pelo AKP, o de­sem­prego ga­lo­pante que atinge jo­vens qua­li­fi­cados e não-qua­li­fi­cados; contra as ori­en­ta­ções ne­o­li­be­rais im­postas pelo pri­meiro-mi­nistro Recep Er­dogan e as suas con­sequên­cias so­ciais; contra a vi­o­lência po­li­cial cada vez mais fre­quente e o au­to­ri­ta­rismo do go­verno que sempre se re­cusa a ne­go­ciar.

A Síria é uma questão cen­tral. A 11 de Maio, o go­verno turco acusou a Síria de ser res­pon­sável pelas ex­plo­sões em Reyhanli. Nin­guém acre­ditou nisso. Nin­guém acre­dita que a Frente al-Nusra, vin­cu­lada à al-Qaeda, pro­duza armas em Adana, a quinta maior ci­dade turca, sem o co­nhe­ci­mento de An­cara.

A ini­ci­a­tiva que a As­so­ci­ação de Paz da Tur­quia e o Con­selho Mun­dial da Paz pro­mo­veram em An­takya, no final de Abril, in­cluindo um acto pú­blico com mi­lhares de pes­soas, es­cla­receu e mo­bi­lizou contra a guerra. A es­ma­ga­dora mai­oria dos po­pu­lares da pro­víncia de Hatay ti­veram algum con­tacto com o mo­vi­mento da paz. A isto acresce o facto de ob­ser­varem a li­ber­dade com que se mo­vi­mentam os ter­ro­ristas na fron­teira e, so­bre­tudo, cons­ta­tarem que dois anos de guerra na Síria pro­vo­caram o co­lapso da eco­nomia na sua re­gião.

Para mais, os aten­tados em Reyhyanli vi­ti­maram cerca de uma cen­tena de pes­soas. O pri­meiro-mi­nistro acusa um Es­tado vi­zinho da sua au­toria e a pri­meira coisa que faz é des­locar-se aos EUA para reunir com Ba­rack Obama e apelar a um in­ter­venção na Síria? Tudo isto tornou muito claras as in­ten­ções do AKP e de­sa­cre­ditou o go­verno aos olhos do povo, que re­cusa que a Tur­quia seja o prin­cipal centro de pro­vo­cação à Síria, que re­jeita que a «opo­sição» se reúna no país e tenha bases.

 

Há então um de­no­mi­nador comum?

Sim, há, a is­la­mi­zação da so­ci­e­dade num de­ter­mi­nado sen­tido. Re­cen­te­mente, o go­verno fez aprovar le­gis­lação que li­mita a co­mer­ci­a­li­zação e con­sumo de ál­cool. O que os turcos vêm nisto não é a de­fesa da saúde pú­blica, mas o apro­fun­da­mento de uma ori­en­tação por parte do AKP. A mai­oria dos turcos são mu­çul­manos, mas con­vivem com a re­li­gião de uma forma di­fe­ren­ciada face a ou­tras fac­ções is­lâ­micas. De­fendem o Es­tado laico e os va­lores do se­cu­la­rismo.

O AKP não é so­mente um par­tido, mas um pro­jecto. Po­demos até dizer que terá ser­vido de ins­pi­ração no des­fecho das cha­madas pri­ma­veras árabes para a ins­ta­lação no poder de par­tidos afectos à Ir­man­dade Mu­çul­mana. O AKP foi a pri­meira ex­pe­ri­ência bem su­ce­dida de um mo­delo de con­so­li­dação de um poder is­lâ­mico pro­motor de po­lí­ticas ne­o­li­be­rais. O AKP aca­lenta a es­pe­rança de re­cons­truir o im­pério oto­mano, ser a maior po­tência re­gi­onal. Washington apoia um poder desse tipo. O AKP é apoiado pelo grande ca­pital na Tur­quia.

 

Qual o rumo que os acon­te­ci­mentos podem tomar?

As mo­vi­men­ta­ções de massas cres­ceram de uma forma es­pon­tânea. O go­verno mostra-se in­capaz de ma­ni­pular essa di­nâ­mica. Tem a mai­oria no par­la­mento, tem di­nheiro e apoio das petro-mo­nar­quias árabes do Golfo, mas não vai con­se­guir con­trolar um povo in­teiro que sempre se tem ma­ni­fes­tado. A Tur­quia não é uma so­ci­e­dade aba­fada, ca­lada, amorfa. Mi­lhões de pes­soas estão nas ruas com rei­vin­di­ca­ções es­pe­cí­ficas. De­mitir o go­verno é a ta­refa ime­diata.

O TKP está a de­sem­pe­nhar um papel fun­da­mental no es­tí­mulo da luta. No úl­timo sá­bado, apoiou e chamou para uma ma­ni­fes­tação na Praça Taksim. O Par­tido Po­pular Re­pu­bli­cano, maior par­tido da opo­sição par­la­mentar, fun­dador da Re­pú­blica Turca, so­cial-de­mo­crata, foi obri­gado a des­con­vocar o pro­testo, agen­dado para uma outra praça de Is­tambul e a mo­bi­lizar para Taksim.

É certo que os pro­testos ca­recem de uma di­recção po­lí­tica. Neste mo­mento, ne­nhum par­tido pode rei­vin­dicar a con­dução de um pro­cesso onde so­bressai a grande energia e dis­po­ni­bi­li­dade das massas. É ur­gente ga­rantir a uni­dade de acção e pro­pó­sito, as­se­gurar que a re­sis­tência pros­segue. Se este mo­vi­mento deixa as ruas para a po­lícia, o go­verno vai en­tender que forçou o re­gresso do povo a casa e avançar com mais li­mi­ta­ções à li­ber­dade, mais re­pressão, mais au­to­ri­ta­rismo.

Der­rotar o AKP e exigir elei­ções an­te­ci­padas é um ob­jec­tivo justo e mo­bi­li­zador que con­tribui para o recuo do seu pro­jecto po­lí­tico.



Mais artigos de: Internacional

Mais força à paz

O CPPC aco­lheu, no fim-de-se­mana, as reu­niões do Se­cre­ta­riado e da Re­gião Eu­ropa do Con­selho Mun­dial da Paz (CMP), das quais saiu a firme in­tenção de re­forçar o mo­vi­mento num mo­mento em que ele é tão ne­ces­sário.

Manning, Assata, liberdade

Começou na segunda-feira o julgamento de Bradley Manning, o soldado estado-unidense de 25 anos que, há três anos, foi preso sob a acusação de ter tornado públicos centenas de milhares de documentos secretos, naquela que foi a maior fuga de...

Maioria aprova <br> ex-dirigentes soviéticos

Um inqué­rito re­a­li­zado entre 19 e 22 de Abril pelo Ins­ti­tuto Le­vada in­dica que a mai­oria dos russos avalia po­si­ti­va­mente os di­ri­gentes so­vié­ticos, e ne­ga­ti­va­mente os mais co­nhe­cidos pro­ta­go­nistas lo­cais do der­rube da URSS. O im­pe­rador Ni­colau II, de­posto pela Re­vo­lução de 1917, re­colhe um total de 48 por cento de opi­niões fa­vo­rá­veis.

Apesar da in­tensa cam­panha de in­to­xi­cação pú­blica contra a ide­o­logia co­mu­nista, os co­mu­nistas e o seu pro­jecto de so­ci­e­dade, a União So­vié­tica e a cons­trução do so­ci­a­lismo, Lé­nine e Stá­line re­co­lhem ava­li­a­ções po­si­tivas de 55 e 50 por cento, res­pec­ti­va­mente. Va­lores se­me­lhantes, se­gundo o inqué­rito do Le­vada, são ob­tidos por Kh­ru­chov (45 por cento) e Brejnev (56 por cento).

Já Gor­ba­chov e Iéltsin são con­si­de­rados pela mai­oria como fi­guras de acção per­ni­ciosa, mo­ti­vando ava­li­a­ções ne­ga­tivas da parte de 66 e 64 por cento dos ques­ti­o­nados, e o valor de apro­vação mais baixo entre as fi­guras con­si­de­radas, 22 por cento.

Desigualdade brutal

Me­tade dos ren­di­mentos mun­diais é con­tro­lado por oito por cento dos mais ricos, afirma um dos prin­ci­pais in­ves­ti­ga­dores do Banco Mun­dial. Des­ven­dando al­gumas das con­clu­sões que fará pu­blicar num ar­tigo na re­vista «Global Po­licy», Branko Mi­la­novic re­velou, igual­mente, que «a de­si­gual­dade mun­dial é muito maior que a de­si­gual­dade em qual­quer país con­creto».

Os dados apu­rados per­mi­tiram ao eco­no­mista cons­tatar também que um por cento mais ricos do pla­neta pos­suem quase 50 por cento do con­junto dos ac­tivos pes­soais. Este grupo res­trito é com­posto em grande me­dida por norte-ame­ri­canos e eu­ro­peus oriundos de fa­mí­lias que acu­mu­laram for­tunas ao longo de dé­cadas, pas­sando-as de ge­ração em ge­ração.

Mi­la­novic afirma ainda que aquela elite viu o res­pec­tivo pa­tri­mónio au­mentar em mais de 60 por cento entre 1988 e 2008, ao passo que os in­gressos dos 5 por cento mais po­bres ao nível global não re­gis­taram al­te­ra­ções sig­ni­fi­ca­tivas.